O lado oculto da Lua? É fácil de avistá-lo: é aqui, na Terra. Mais exactamente a uns dez minutos de Swakopmund, à direita na estrada que sai da cidade. Não é preciso explicar mais nada: só há uma estrada que sai de Swakopmund. Passada uma dúzia de quilómetros de ter inicio a viagem, é só olhar à direita: está ali, a lua. Aquela que nunca tínhamos conseguido ver quando olhávamos para o céu.
Esquecia-me de apontar uma última coisa sobre esta face oculta da lua: a localização de Swakopmund. É uma cidade da Namíbia. Aliás, é a outra cidade da Namíbia. Só há duas, dignas dessa classificação: Windhoek, a capital. E Swakopmund, a outra cidade. O resto da Namíbia é um desolado vazio imenso onde, de tantas em tantas centenas de quilómetros, aparece um tímido aglomerado urbano.
Pensando melhor, nem são precisas tantas indicações para chegar à face oculta da Lua. Basta dizer: Namíbia. Tudo neste país infinito parece estar já fora da Terra: um país lunar. Desertos que estão entre os mais áridos do planeta; desfiladeiros terríveis que se abrem só a quem está disposto a desaparecer da civilização por uns dias; correntes oceânicas que tornam inviável qualquer forma de vida que não seja sub-antártica; o maior meteorito do mundo ali caído por acaso, ou talvez não; temperaturas que queimam de dia, gelam de noite; e um vazio de pontos de referência na paisagem estonteante. Os topónimos sublinham esta qualidade etérea, inquietante da Namíbia: Costa dos Esqueletos; Montanha Queimada, oásis Solitário, Fonte Incerta, Água Má, Colina do Sangue, Floresta Petrificada. Ou seja, Skeleton Coast, Burnt Mountain, Solitaire; Twyfelfountain, Uis, Bloedkoppie, Petrified Forest.
Estão todos lá, espalhados por qualquer mapa ou guia. Às vezes ponho-me a olhar para estes mapas e guias e divirto-me a procurar nomes estranhos, ou factos curiosos, ou percursos possíveis. Divirto-me? Enfim, não é um divertimento, é um planeamento. Encontro algo que me interesse, um topónimo, um marco paisagístico, uma história de vida, e digo: “bom, a próxima vez que for à Namíbia…”. É um país que conheço bem e que não me canso de querer conhecer melhor. Também, porque a Namíbia está cada vez melhor. Passaram quinze anos desde a minha primeira viagem a este país relegado para o sul do mundo, e cada vez é mais “fácil” e “conveniente” visitar a Namíbia. Parecem palavras estranhas para uma nação de paisagens áridas, aldeias dispersas, animais selvagens, infra-estruturas reduzidas. Mas creio que é esse o segredo do enorme sucesso turístico que este país conheceu ao longo dos anos noventa: o governo investiu na modernização das infra-estruturas, no respeito pelo meio ambiente, no bom estado das (poucas) estradas nacionais e sobretudo apostou numa oferta turística sustentável e ecológica.
Não é por isso um paradoxo que a Namíbia seja ao mesmo tempo fácil e selvagem, moderna e primordial, conveniente e inacessível. Um dos exemplos que melhor ilustram este paradoxo é o circuito dos camiões overland, ou seja, de enormes viaturas que num passado longínquo foram usadas sabe-se lá para quê — talvez no transporte de pilares para um viadutos, ou de pés de galo de cimento para um quebra-mar, ou de vigas de carris para linhas ferroviárias — e que agora conhecem uma nova vida a transportar mochileiros em excursões nos limites da civilização. Estes camiões apetrecham-se de tudo o que é indispensável para a vida humana — água, comida, tendas, lenha, combustível — e enfiam-se com os seus passageiros durante uns dias nesse vazio absoluto que é o território da Namíbia.
Integrado numa destas excursões, tive a possibilidade de conhecer alguns dos lugares mais inóspitos e bonitos do planeta. Viajávamos pelo planalto desértico fora como se fosse o quintal de casa, com um sentimento de prepotência e confiança como se tivéssemos sido criados naquele ambiente. Claro que esse sentimento não nos pertencia, era-nos transmitido pela desenvoltura com que o motorista do camião overland atravessava leitos de rios secos há décadas, e contornava calhaus do tamanho de estádios de futebol e descobria com a precisão de um satélite clareiras sem inclinação para montarmos as tendas e passarmos a noite.
O motorista era uma mulher, uma mulher de armas que se chamava Maya e que me lembrava uma personagem feminina de uma história do Lucky Luke que, também ela, mascava tabaco, jogava póker e dizia palavrões, e tal como a Maya era oriunda de um deserto, neste caso o do Arizona. A diferença entre as duas mulheres era simples: a Maya existia mesmo.
Não havia nada homossexual ou sequer anti-feminino na Maya. Não era uma valquíria nem uma amazona. Simplesmente, pertencia ao planalto desértico da Namíbia, tinha crescido num dos ecossistemas mais duros e áridos e desmesurados do planeta, todos os dias assistia ao por-do-sol mais bonito da minha vida, e dormia debaixo das únicas estrelas que eu jamais vi que parecessem ter cor. Era, portanto, natural para a Maya ficar indiferente a estas coisas e estar mais interessada numa partida de póker. E quem não sabe conduzir por todos os terrenos, na Namíbia tem pouco por onde conduzir. Por tudo isto, o que a mim me parecia um comportamento, uma atitude existencial digna de um livro de banda desenhada; para a Maya era o dia quotidiano. A sua feminilidade traduzia-se simplesmente por ser mulher na Namíbia.
Recordo particularmente comovido um lugar onde a Maya nos conduziu uma noite. Acampámos no sopé dos montes Naukluft e mais uma vez eu tinha a sensação de ter chegado ao limite do mundo. Sabia que não, tinha a consciência que todos os meses a Maya devia trazer um grupo de mochileiros aqui, e também outros “tours” de camiões overland deviam usar a zona para pernoitar. Mas essa consciência não afectou a minha capacidade de me abismar com a “excentricidade” do lugar: “excentricidade”, aqui, é no sentido de estar fora do centro, precisamente na periferia do mundo. No seu fim.
Nessa noite, afastei-me lentamente das tendas, caminhei na direcção de um enorme maciço monolítico, desses que têm a dimensão de um estádio de futebol, e pus-me calmamente a subir pela crina. Não levava lanterna, não era preciso. Era uma noite luminosa, transparente. São sempre assim, as noites da Namíbia: estamos num planalto a mais de mil metros de atitude, num deserto, numa região sem smog luminoso. Creio que são as noites mais claras do mundo.
Não queria chegar ao topo de coisa nenhuma, só desejava caminhar um pouco pela noite sem lanterna, e depois olhar para as estrelas. Fiquei ali em silêncio sentado, esparramado na crina do monólito, a olhar para as estrelas. Como se este fosse o momento mais intenso e irrepetível da minha vida, como se tivesse que absorver cada segundo com toda a concentração do mundo para que nunca mais o esquecesse. Olhei para as tendas. A noite era tão clara que conseguia observar o acampamento como se estivesse dentro dele.
Sorri. Entre outras coisas, lá estava a Maya, a fumar um cigarro, a limpar qualquer coisa no motor do camião, talvez a dizer um qualquer palavrão, completamente desinteressada das estrelas, apenas mais uma noite de trabalho no quotidiano dos dias da Namíbia.