Iuri no Deserto por Gonçalo Cadilhe

Talvez seja um dos lugares mais bonitos do mundo. Só me lembro disso agora que estou outra vez nele. Devia lembrar-me mais vezes — por exemplo, quando me perguntam: “para si qual é o lugar mais bonito do mundo?” Há sempre tantas respostas possíveis mas, agora, fico furioso por nunca me lembrar de dar esta: “o corredor de dunas de Sossusvlei”.

A palavra “corredor” não aparece em nenhuma designação oficial. Os mapas indicam apenas o nome “Sossusvlei” para este ponto de encontro de dunas que parecem atravessar o deserto do Namibe até virem quebrar aqui — como as ondas atravessam os oceanos até chegarem a um litoral. Os ventos explicam por que razão Sossusvlei está para as dunas como os litorais estão para as ondas. Os ventos aqui mudam, e as dunas não avançam mais. E, tal como os litorais sublimam a energia das ondas fazendo-as quebrar, também a um visitante o fim do mar das dunas transmite a ideia épica de um condensado da beleza de todos os desertos do mundo.

Eu chamo-lhe “corredor” mas é na realidade uma estrada com 60 quilómetros que sai do parque de campismo de Sesriem, na base das montanhas de Naukluft e segue para oeste, na direcção do Atlântico, que está a mais de cem quilómetros de distância. A estrada acaba em Sossusvlei, depois começa o deserto. À medida que nos aproximamos de Sossusvlei, a paisagem muda: os contrafortes das montanhas Naukluft dão lugar a colinas suaves que, por sua vez, dão lugar a dunas abruptas que anunciam o deserto. São estes últimos vinte quilómetros que me deixam furioso por nunca me lembrar deles.

As dunas mais impressionantes do mundo descem rapidamente até à berma da estrada — labaredas que dançam do deserto para fora na nossa direcção e ao nascer do sol têm a cor do fogo para mais um dia a ferver. E o carro desfila pelo meio desta embaixada exuberante quase sem reparar nela, porque o ponto de encontro é mais à frente: no fim do corredor, em Sossusvlei.
Os visitantes param aqui. Ninguém tenta continuar. Como se a curiosidade terminasse onde termina a vida: para lá de Sossusvlei, apenas o silêncio estéril e sufocante, o excesso de espaço e luz, a recusa de dádivas da Terra, a ausência de pulso do planeta. O princípio do nada. E, no entanto, esperamos um guia que nos vai mostrar como se vive no deserto. É esse o tema do “tour”: explicar o funcionamento do ecossistema do Namibe, caminhando um par de horas nesse condensado de todos os desertos do mundo.

Espero por um guia que se assemelhe vagamente a um bosquímano. Não pretendo uma mistificação em tanga e lança, mas seria de supor que o nosso guia terá nascido e crescido no ecossistema que tão bem conhece. Afinal, o nosso guia não é bosquímano, nem namibiano, nem sequer africano. Não é um guia, é uma guia… e é japonesa. “Amo o deserto”, explica-nos, quase que justificando-se. “Chamo-me Iuri”.

Imagino Iuri em Tóquio. Ou em qualquer outra grande cidade do Japão: Iuri enfaixada em trânsito, prédios, horários e convenções sociais. E depois, um dia, o encontro com a liberdade do deserto. “Estudei turismo e era uma dessas guias com o guarda-chuva vermelho esticado ao alto como vocês vêem na Europa”, explica-nos.

Há cerca de dez anos, Iuri chegou a Sossusvlei. Descalçou-se, e nunca mais se foi embora. Nem nunca mais se calçou. “Porque andas descalça, Iuri?”, perguntamos-lhe. Ela sorri e encolhe os ombros, todos os dias lhe devem fazer a mesma pergunta. Põe-se a correr por Sossusvlei fora, diz: “Sigam-me. Mas não precisam de correr”. Corre até encontrar vida, depois chama-nos. Aponta: um escaravelho, uma aranha, uma raiz, excrementos de chacal, pegadas de antílope. Todos eles espécies únicas no mundo que só existem aqui: adaptaram-se para poderem sobreviver no deserto da Namíbia.

Iuri também se adaptou, se calhar anda descalça como quem sobe um degrau na evolução dessa subespécie humana que é a dos que amam o deserto. Casou com um homem da sua subespécie, um branco sul-africano que também se mudou para Sossusvlei. O apelido do marido é “Bushman”, em português significa “bosquímano”. Não é alcunha, dizem-me, é mesmo assim. Juntos, possuem uma pequena agência de turismo, especializada em passeios pedestres por Sossusvlei.

Há alguns meses atrás atravessaram o Namib desde aqui até ao Atlântico, a pé. E descalços, claro. Lembro-me de uma conversa com o meu amigo Ian, que vive perto daqui, em Witsvlei, na orla de outro grande deserto, o Kalaári. Ian elogiava as vantagens de possuir um todo-terreno na Namíbia: “às vezes, conduzo até lugares tão afastados de qualquer estrada que acredito ser o primeiro homem a chegar lá”. Descalço, pelos vistos, vai-se mais longe.

Enquanto a Iuri vai explicando todos os truques que a vida teve que inventar para sobreviver aqui — e por vezes nem sequer conseguiu — eu penso na absurda teoria do “intelligent design”, que os fundamentalistas evangélicos gostam de citar. Deus foi conduzindo a evolução das espécies até ao produto final, o Homem. Então para quê as dezenas de milhares de espécies extintas? E para quê este “desvio” pelo deserto? Para eles, a teoria da evolução de Darwin e o dogma criacionista da Bíblia são compatíveis; Religião e Ciência são duas faces da mesma moeda. Não são. Penso que são como uma ampulheta: à medida que a areia irá enchendo o compartimento da Ciência e do saber, o outro compartimento irá esvaziando-se até perder qualquer significado.

Penso também noutra coisa. Que este tour devia durar duas horas, foi o que pagámos. Mas a Iuri já está connosco há três horas e meia, e não parece querer terminar as suas explicações. Encontra sempre mais um lagarto, um cacto, uma mudança de direcção do vento, um vestígio de mar na areia do deserto. E segue mais uma explicação. Iuri ama o deserto, e gosta de partilhar esse amor. Nós agradecemos. “Venham atrás de mim, não precisam de correr”, repete, enquanto corre à nossa frente, à procura de mais vida para explicar, descalça.

Gonçalo Cadilhe

nota: Artigo referente à viagem Nomad líderada pelo Gonçalo em Junho de 2008, mais info em http://www.nomad.pt/empresa.htm. Publicado no Expresso em 26 Julho 2008.