No topo do Alto Atlas

Acordo sobressaltado! O barulho estridente de um alarme ecoa por toda a camarata; o ruído inconveniente que teima em não parar impede-me de me voltar para o lado e adormecer. Olho para o relógio, são 6h. Está na hora de me preparar para partir em direcção ao cume.

Saio do refúgio ainda meio ensonado, talvez não tenha sido boa ideia ficar até às tantas a jogar às cartas com o Mustapha… Ele guarda o refúgio quase todo o ano, trocando ocasionalmente com os irmãos, para que assim possa ir a “casa” em Imlil. O céu está estrelado e não há vento, estou com sorte! Na montanha a meteorologia dita todas as regras; bom tempo equivale a boas hipóteses de cume. Mau tempo significa que provavelmente não chegamos lá, ou que nos metemos em sarilhos.

Ligo a lanterna, coloco cuidadosamente os crampons nas botas. Certifico-me que tenho tudo o que preciso na mochila. O sono e o frio aliado à ansiedade de subir, por vezes levam-me a descuidos; e o casaco de penas que carrego na mochila pode ser decisivo, especialmente quando estou em alta montanha no pico do Inverno.

Abandono o refúgio seguindo um trilho marcado na neve, rasto de outras pessoas que por aqui já passaram. Hoje não há muita gente a subir, apenas vejo lá à frente a luz das lanternas das duas norueguesas e a do seu guia marroquino.

Caminho vagarosamente, mantendo o passo constante, habituando o corpo à altitude. A minha respiração ofegante relembra-me que tenho de voltar às minhas corridas matinais.
Grande parte da ascensão é feita pela face norte, o lado escuro e frio da montanha. O que em certa medida é bom, pois mantêm a neve rija; sendo mais fácil de caminhar, já que assim não nos enterramos a cada passo. Mas nas secções mais empinadas, torna a subida também mais perigosa. Já que em caso de queda, ganhamos velocidade com mais rapidez (como eu viria a verificar na descida…).

A neve crepita a cada passada. Caminho num estado de transe, concentrando-me no trilho iluminado pelo halo da minha lanterna. A montanha sempre teve este efeito em mim, desligar-me do mundo. Neste momento tudo o que interessa é subir, nada mais importa. Estar aqui é esquecer tudo para além destas paredes, um prazer constante. Pelo isolamento – o que hoje em dia, é cada vez mais difícil. Pela conquista de um objectivo obvio.

Muitos se interrogam sobre o propósito de escalar, subir montanhas. Porquê desgastar o corpo, por vezes arriscar, sofrer. Para uns meros minutos num cume? Só que o cume nunca é o objectivo, apenas uma desculpa. O objectivo está na rota escolhida, no estilo adoptado. Existem muitas frases eloquentes para descrever este “desporto”, mas a explicação é simples. As montanhas são uma paixão arrebatadora, tão racional como qualquer outra paixão. Um local quase religioso. Aqui em cima tudo se torna mais claro, límpido e simples. Toda a responsabilidade, todas as hipóteses de sucesso, tudo depende apenas de nós. Da nossa força de vontade, da nossa preparação, da nossa motivação. (in)Felizmente estou numa via de ascensão fácil, que com esta meteorologia magnífica, não apresenta nenhuma dificuldade. Hoje a minha peregrinação é mais branda…

Chego ao topo da encosta norte, tenho o cume ao alcance da vista! O sol que acabou de nascer ilumina tudo à volta, aquecendo-me. Daqui consigo observar todo o esplendor do Alto Atlas; as íngremes encostas cobertas de neve, as agulhas de rocha, os lagos gélidos.

O vento começa a soprar com força e a subida adivinha-se ainda mais íngreme. Como se num último esforço a montanha estivesse a proteger o seu cume de saqueadores. Estou meio enjoado, subi depressa demais desde Imlil, ou então, tenho mesmo de voltar a correr... Seja como for, o cume está mesmo ali, já não falta muito. Resta apenas superar um último passo traiçoeiro e caminhar cerca de meia hora para lá chegar.

Finalmente estou na conhecida pirâmide de ferro que marca o topo do Atlas! Celebro com as norueguesas e o com Hassan, o seu guia marroquino. Em redor destas muralhas, uma planície infinita alonga-se até ao horizonte. Nos vales escavados a sul, avisto uma pequena aldeia, reconheço-a da minha última visita ao Atlas. Foi ali que abandonei a minha primeira tentativa de chegar a este cume. Dessa vez, o plano era cruzar a montanha de Sul para Norte. Lá partimos de Ceuta – em cima de uma bicicleta – em direcção ao deserto para depois subir o vale do Draa até ao Atlas. Quando chegamos aquela aldeia sentimos na pele a inclemência da montanha. Uma chuva torrencial, com granizo, aliada aos mais de 1500 km de bicicleta deitou por terra as nossas ambições. Dois anos depois cá estou no topo, a contemplar o silvo do vento, valeu a pena a espera…
Sou acordado por Hassan que se despede de mim, vão descer de volta ao refúgio. Querem lá chegar a tempo de almoçar e voltar ainda hoje para Imlil, esse é também o meu plano. Observo-os a percorrer o caminho de regresso, o mesmo que me levará de volta ao conforto da casa de Mohamed. Imagino o sabor do tajine que estará à minha espera, o calor de um banho quente. Mas… E aquele cume ali ao lado… Não parece ser muito longe… Será que dali tenho uma vista ainda melhor do Atlas?!

Tiago Costa (líder Nomad)