Santuário e Campo Base dos Annapurnas

Não tenho medo de confessar que estava entupida de receios sobre esta viagem ao santuário dos Anapurnas. Não conseguia parar de fazer um bicho de sete cabeças acerca dos pormenores desta aventura. Nunca tinha feito um trekking, não sabia como reagiria à altitude, ao cansaço, aos horários demasiado madrugadores para quem está a gozar férias, como me adaptaria à alimentação e às precárias condições de higiene, isto para citar apenas alguns dos meus receios. Isto foi o meu princípio: receios.

Partimos no dia 5 de Outubro rumo ao Nepal, com uma paragem na Índia, em Nova Deli, onde ficámos uma noite e sentimos o primeiro ar do “exotismo” oriental. Primeira impressão: caos. Que se esqueçam as regras de trânsito mais elementares. Que se abandonem os pruridos em sujar a via pública. Que se ignorem princípios básicos de segurança: sim, as pessoas (e os animais!) podem viajar no topo dos autocarros. Segunda impressão: cores. As cores que enfeitavam os camiões que passavam por nós na estrada, as cores dos saris das mulheres hindus, as cores dos mais variados artigos que são vendidos pelas ruas, desde tecidos, frutas, bijutarias, a brinquedos, tudo!

Depois deste baptismo rápido de oriente, sentia-me mais preparada para enfrentar a bizarria que habitava a minha Kathmandu imaginária e, por arrasto, todo o Nepal.
Resultou. A passagem por Nova Deli funcionou como uma vacina a tudo o que de mais estranho desfilasse pelos meus olhos à chegada a Kathmandu.

Fomos recebidos com grinaldas de flores e muita simpatia. Ficámos instalados na zona turística da cidade, Thamel, que é um viveiro daquilo que designei por “turismo freak”, e onde vibrei com a profusão de cheiros, sons, mais e mais cores, tudo distribuído pelo oportuno comércio de souvenirs, restaurantes, vendedores ambulantes, trânsito complicado de veículos motorizados e riquechaws. Um tour pela cidade no dia seguinte levou-nos a conhecer as suas principais atracções, um pouco da sua história, cultura e tradições. Até aqui, nenhum dos meus receios tinha sido colocado de forma séria à prova. Que venha o trekking! E veio.

Mais um dia e chegámos a Pokkara. Linda. Encaixada num cenário fantástico de montanhas sagradas, a sua beleza fica redobrada quando as águas do lago Fedi(?) reflectem o perfil dos Anapurnas. Todas as condições de alojamento continuavam ao melhor nível, com a variante favorável de agora tudo parecer mais convidativo, graças à atmosfera bem descontraída desta cidade. Sentia-me cada vez mais encorajada a começar o meu trekking. Tudo no mais perfeito timming.

E agora era a valer. Seis trekkers, 1 guia e 3 carregadores. Estava formada a equipa para esta aventura (ou talvez ainda não). Início: Fédi. Objectivo: Tolka. 1ª paragem: Potanna. E lá fomos nós. Nada como começar com uma subida de alguns milhares de degraus (a sério!: o Zé contou-os). Nada mau porque, quando finalmente acabámos de subir, não me senti tão cansada como pensei que poderia ficar. Um indício do fim dos meus receios e uma primeira vitória orgulhosamente silenciosa. A paisagem transformava-se de campos de arroz ou milé(?) para bosques desafogados, de árvores altíssimas e muita frescura. Potanna surgiu a tempo de um merecido e compensador almoço, e Tolka, no fim do dia, parecia um prémio pelo esforço e coragem despejados em horas de caminhada e travessias de pontes à filme de aventuras. Um contratempo transformou um dos carregadores em guia nº 2 e acrescentou mais um membro à nossa equipa: o mítico super porter -“hundred kilos, no problem” era o seu lema.
No dia seguinte, o destino era Chomrong. Mais subidas intermináveis sobre degraus toscos e muito irregulares (benditos batons). Bandos de crianças das aldeias que cruzávamos pareciam troçar de nós. Muito bem compostos no seu uniforme escolar, ultrapassavam-nos aos saltos, desprovidos de qualquer equipamento trekker, alguns com os mais pequenitos ao colo, sem vacilar o mínimo! Grunf! Mas ok, a experiência é tudo. Uma coisa tentei interiorizar: mais me vale parar de lamentar - se miúdos com menos de 10 anos fazem isto com uma perna (e o irmão mais novo!) às costas!...

Em Chomrong fomos recebidos em grande, com direito a um espectáculo de danças e cantares locais. Como insistia em explicar o nosso mestre de cerimónias: “this is traditional gurung dance (...) “, e o resto do discurso ficava definitivamente lost in translation, se calhar devido a um excessozito de jumping tea, mas é melhor não entrar em detalhes.
Agora, era a vez da floresta húmida. As mudanças paisagísticas eram súbitas. Depois de determinada paragem, o cenário transformava-se abruptamente. Após Chomrong, acabaram os campos de cultivo e os bosques de estilo europeu. O ar tornava-se mais denso, o céu ficava escondido atrás das copas das árvores, o piso era agora extremamente escorregadio, feito de lama, recortado pelas raízes grossas das árvores. Com certeza que éramos observados por infinitas criaturas selvagens mas, de tão esquivas, não lhes pusemos a vista em cima. Algumas faziam-se ouvir, sobretudo as aves e os insectos e, tenho a certeza, alguns macacos. Definitivamente, não queriam nada com humanos. Restaram-nos alguns encontros indesejáveis com sanguessugas. A Paula ficou irremediavelmente marcada por um destes encontros.
De todas as paragens que fizemos, uma das mais fantásticas foi Dovan. Diante de uma vista aberta sobre o vale que atravessávamos, a Marisa decretou Dovan como o retiro ideal para quem necessite de uma pausa zen para se dedicar à leitura, à meditação, à tranquilidade, ao bem-estar espiritual, etc. No alto, o cume definidíssimo do Fish Tail inspirava uma calma de guardião silencioso. Para mim, tornava-se fácil perceber agora a sacralidade daquelas imponentes massas de rocha.

Entretanto, e voltando à viagem dentro de mim própria, ia-me apercebendo que estava cada vez mais esquecida dos meus receios iniciais. A naturalidade com que a gradual ausência de condições acontecia accionava a minha desconhecida capacidade de adaptação, de forma praticamente automática! E, quando falo de condições, refiro-me apenas à higiene. A alimentação nunca foi um problema, cada um descobrindo as suas preferências e mantendo-as, pois, em todos os locais, o cardápio permanecia inalterável. A Paulinha devorava chapatis com mel, o Zé pedia, invariavelmente, sopa de tomate a cada refeição, a Marisa reconfortava-se diariamente com o seu chazinho massala, o meu namorado descobriu uma deliciosa pizza de atum, o A e eu (bem, principalmente eu, usurpando a ideia do A) entretínhamo-nos tardes inteiras ao sabor de cerveja e Pringles (vá lá, outra vez, mais eu, é verdade). Isto, para não falar de delícias pontuais que íamos encontrando nalgumas paragens, a já mencionada pizza de atum de Macchapuchre B. C., os deliciosos “carossants” de chocolate e a divinal tarte de maçã de uma improvável pastelaria de Chomrong, a frescura crocante dos vegetais cultivados aos 4000 mts de altitude no A. B. C., as panquecas de chocolate em Himalaya, e o magnífico Dal Bat (“the nepali pizza”) que comemos pouco antes de regressar à civilização. Ah! Os horários madrugadores nunca fora um problema. Ainda por cima, posso dizer que, em montanha, nunca dormi uma noite de sono profundo! Só que o entusiasmo crescente pelas caminhadas e pelos diversos destinos impunha-se a qualquer preguiça fabricada! - o cansaço pode ser uma coisa muito “psicológica”.

Atravessada a floresta húmida, era a vez da paisagem de altitude, que se estendia para nos receber à chegada de Macchapuchre Base Camp. Vegetação rasteira, ribeiros de água glacial que acompanhavam permanentemente o trajecto, pedregulhos espalhados pelo solo, como cascalho de gigantes. A temperatura foi, para mim, a mudança mais difícil. Eu dou-me maravilhosamente bem com o sol e o calor, o frio é meu inimigo. Mas aprendi a enfrentá-lo. O truque, numa aventura destas, é simples, infalível e incontornável: basta mantermo-nos em movimento! Falei em gigantes. Voltando a eles, era à sua espera que estávamos todos ao chegar ao místico Anapurna B.C. Desilusão. Fomos recebidos por uma nuvem desmesurada, que tinha engolido todos esses gigantes que supostamente estariam aqui reunidos. As nuvens podem ser muitas coisas, fofas ou misteriosas, mas quentes não são! Estavam 2 graus negativos. Parecia não haver muitas opções para quem tinha um dia inteiro pela frente sem poder apreciar a paisagem circundante, aquela que, de resto, seria a razão principal pela qual nos demos ao trabalho (que agora encarava como prazer) da caminhada. Mas isso, só se for para as mentes menos criativas. O que se pode fazer a mais de 4000 mts de altitude, sob um frio de rachar e um nevoeiro quase opaco? Se fosse uma australiana aparentada de Miss Piggy, responderia: ficar à espera de ver quem chega e meter conversa para revelar o que há de mais cool acerca de mim - a minha nacionalidade! Se fosse um carregador nepalês, responderia: jogar voleibol! Se fosse um espanhol cheio de salero, responderia: fazer claque pela nossa equipa de carregadores, olé! E, se fosse um português na casa dos 30 e entusiasmado com o animadíssimo jogo decorrente, responderia: brincar às escondidas! Sim, ouviram bem, brincar às escondidas! Coisa que, nesta idade e a esta altitude, se pode transformar num passatempo a fervilhar de emoção e imaginação. Vale tudo, desde misturar-se com o público do voleibol, contar até 30 em 5 segundos, vestir um casaco alheio e assumir-se, assim, como “escondido”, correr como se não houvesse mais amanhã, até nem sequer tentar fazer o mais básico deste jogo, que é... esconder-se.

E pronto, sim, no dia seguinte a magia aconteceu. Levantámo-nos às 5:45 da manhã para ver, e vimos, claramente visto, finalmente, em todo o seu esplendor, imponente, majestoso, nítido e abrilhantado pelo fantástico espectáculo do nascer do sol, o fantástico e indescritível

SANTUÁRIO DOS ANAPURNAS!!
Querem saber como é? Eu disse indescritível.
Façam como eu: esqueçam todos os receios e vão até lá.

Até lá!
Susana Cunha